sexta-feira, 12 de julho de 2019

Ei professor?


Este texto da Rosaura Soligo é um chamamento ao nosso ofício de educador. Gostaria de compartilhar com todo os colegas, como devemos ver a leitura na escola e no mundo.

Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.
Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura.
A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação.
Assim, cada leitor é co-autor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita.
Pensei muito tempo no que seria melhor escrever para vocês. Tive muitas idéias, planejei o texto durante vários dias, mudei de opinião sobre o que seria mais interessante… por fim, saiu este, que revisei muitas vezes, com aquele carinho que temos pelo texto escrito quando é destinado a quem gostamos muito.
De fato, o que mais quero é dizer o que penso sobre a importância do conhecimento para a nossa qualidade de vida. Quanto mais se sabe, mais se pode saber – o que sabemos nos faz melhores observadores, melhores interpretes e, por certo, melhores cidadãos.
Quando, algum tempo depois, li o pequeno poema sobre a emoção que me causara o Velho Chico, refleti longamente sobre o quanto o conhecimento abre as portas e as possibilidades…
Quantas pessoas, ao lerem esse texto saberiam do que se trata? A quem ele representaria verdadeiramente uma mensagem?
Com certeza, aos que conhecem o Velho Chico e assim o chamam. Especialmente se tiveram uma experiência e uma emoção parecida com a minha.
Então, mais ainda me encantou o trocadilho “todo ponto de vista é a vista de um ponto”…
Recentemente, assistindo ao programa “Ação”, do Serginho Groismann, fiquei muito impressionada com um depoimento do artista plástico Antonio Veronese. Contando sobre sua experiência com jovens, como arte-educador, deu um exemplo atordoante sobre o prejuízo causado pela ausência de conhecimento à compreensão do mundo, das coisas e dos textos. Para iniciar um trabalho de apreciação do quadro “Guernica”, de Pablo Picasso, resolveu escrever uma frase breve e simples que sintetizasse o contexto retratado na tela. Não me lembro das palavras exatas, mas o texto era mais ou menos assim: “…Guernica é uma cidade da Europa que sofreu um ataque aéreo na Segunda Guerra Mundial e foi completamente destruída…“. Diante da ausência de reação mais significativa, Antonio foi indagando os jovens sobre o que sabiam a respeito e descobriu que muitos desconheciam onde era a Europa, qual o significado da expressão “sofreu um ataque aéreo” e o que teria sido a Segunda Guerra Mundial… Como poderiam então compreender o texto e se impressionar com o seu significado e se comover com o quadro?
Fiquei indignada, pensando no poder que têm a escola e o professor. Podemos dar à luz o conhecimento e o prazer de aprender. E podemos, ao contrário, cristalizar a ignorância, obscurecer.
Se nós, professores, somos a maior categoria profissional do país (mais de um milhão e seiscentos mil!), se 97% das crianças brasileiras estão na escola e nela passam pelo menos quatro horas durante 200 dias ao ano, temos que considerar o enorme poder de formação e de informação que isso representa! No mundo atual, geralmente é com o professor que as crianças mais convivem: de segunda a sexta-feira, por pelo menos quatro horas diárias, anos e anos a fio. Quem tem a chance de ficar tanto tempo com elas? Hoje, poucos familiares gozam desse privilégio! Já pensaram nisso?
Podemos ensinar muita coisa para nossos alunos. E podemos negar a eles o direito de aprender! Tudo depende do quanto acreditamos na sua capacidade e nas suas possibilidades, porque para ensinar muito e bem, precisamos acreditar verdadeiramente que todo aluno é capaz e tem direito ao conhecimento. Essa crença, para mim, é a maior virtude de um professor.
Tenho preferido utilizar essa palavra – crença – porque acho-a a mais apropriada para o caso e porque sei que são nossas crenças que movem nossos passos.
Estive outro dia numa escola pública da periferia de São Paulo e ouvi um diálogo que me provocou tristeza. Uma professora de primeira série (primeiro ano do ciclo inicial) argumentava com a coordenadora pedagógica que não queria distribuir os livros didáticos de estudos sociais e ciências para a sua classe porque os livros eram muito “fortes” – seus alunos, muito “fraquinhos”,  não teriam como entender os assuntos tratados, precisavam aprender coisas bem mais simples primeiro. O que mais me impressionou é que a proposta que ela apresentou de como substituir os conteúdos “fortes” do livro didático (que nada tinham de “fortes” e eram temas que poderiam interessar muito bem as crianças) reunia um conjunto de coisas sem importância ou totalmente conhecidas de todas… Era uma professora preocupada com os seus alunos, desejosa de ensiná-los, bem-intencionada. Mas que de fato não acreditava na capacidade deles… Pobres crianças. Crianças pobres.
Tudo isso me faz pensar que se a escola não tem como meta ensinar a todos, se não crê que seus alunos sejam verdadeiramente capazes e se eles dependem da escola para aprender, o resultado pode ser catastrófico: gente que nunca ouviu falar da Europa, da Segunda Guerra Mundial e de ataques aéreos que destroem cidades, gente que desconhece a geografia e a história do mundo e do próprio país, as lutas sociais e seus protagonistas, as invenções e descobertas científicas, os temas e dilemas da atualidade, as artes, a literatura, os textos e os assuntos de que tratam.
Por essas e por outras, como vocês bem sabem, a proposta que defendemos no PROFA é de-alfabetização-e-de-letramento. Isso significa que, desde o início da escolaridade, é preciso ensinar a ler e escrever no sentido estrito e no sentido lato. Não basta ser letrado e ter amplo conhecimento, quando não se consegue ler e escrever com autonomia. E não basta saber tecnicamente decifrar e produzir escrita, quando não se tem conhecimento sobre os seus usos e, portanto, não se pode utilizá-lo.
Quando a escola não se compromete em alfabetizar a todos, presta um desserviço aos alunos e à sociedade, pois não consegue cumprir com uma de suas finalidades mais antigas: ensinar a ler e escrever. E quando se ocupa somente em alfabetizar no sentido estrito (ensinar a correspondência entre sons e letras) presta o desserviço de produzir analfabetos funcionais – pessoas supostamente alfabetizadas, que na prática não são capazes de ler e escrever e que hoje são milhões no Brasil, um dos países com pior desempenho nesse sentido.
É certo que a real democratização do conhecimento depende de uma série de condições institucionais que são muito mais amplas que o empenho pessoal e as crenças dos professores. Mas também é certo que se todas as condições estiverem dadas*, mas o professor não acreditar que é possível ensinar a todos, muitos alunos se perderão pelo caminho.
Tudo o que fazemos é o que sabemos e acreditamos… E o que a sabemos e acreditamos (nosso ponto de vista) é sempre a vista de um ponto.
Nos cabe, como professores, o exercício do próprio direito de aprender e a garantia de igual direito para as crianças, jovens e adultos que tiverem o privilégio de ser nossos alunos. O conhecimento imprime maior qualidade à vida: é preciso conquistá-lo todo dia!
Boa sorte a todos
Rosaura Soligo


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